O que os trabalhadores da educação têm a ver com a greve dos trabalhadores de aplicativos?

Gabriel Magalhães

O dia 1° de julho é um dia histórico. Muitos de nós não percebemos, mas certamente é. A história do capitalismo é marcada por sucessivas mutações na base produtiva e nas formas de organização do trabalho. A busca frenética e sistêmica por ampliar a extração de valor do trabalho assalariado é o que confere sentido de ser ao capitalismo. É a sua alma. A contraface dessa metamorfose contínua reside na angústia, na incerteza e mesmo na obsolescência dos trabalhadores. Seres humanos de carne e osso, pais e mães de família, com projetos e sonhos, estes se veem sistematicamente lançados no fantástico mundo novo posto pelo capital. Uns ficam para trás, são descartados e a ideologia liberal os trata como pouco esforçados, pouco criativos. Outros conseguem se inserir e responder às novidades e às novas exigências. Estes a ideologia liberal enaltece e os designa sob as mais diversas qualificações mistificadoras: empreendedor, colaborador, MEI, etc.

Os trabalhadores enquanto classe estão sempre “correndo atrás” destas novas realidades postas pelo capitalismo. “Correr atrás” é o sentido de ser do trabalhador nesta sociedade. Correr ou perecer, angústia que faz parte da alma do trabalhador assalariado. Ficou para trás? “E daí?!” O sistema é bruto, insensível, o “nosso” Presidente apenas explicita isso, rasga os direitos de solidariedade que as gerações anteriores conquistaram com a luta de classes e extirpa valores generosos que por vezes contrastam com as práticas sociais cada vez mais competitivas e bárbaras.

As gerações passadas foram enquadradas a fórceps no ritmo frenético da Grande Indústria. Os valores do trabalho na nova sociedade – nada parecido com as sociedades pré-capitalistas, sejam elas feudal ou comunitária, como a dos nossos indígenas – foram inculcados a ferro e fogo e com o auxílio de numerosas instituições formadoras do novo sujeito: a ideologia da fábrica, as escolas, a imprensa, dentre outras. No século XX vieram o taylorismo, o fordismo, o toyotismo. Cada mudança dessa produz, por um lado, novas angustias, novas aflições, novas obsolescências, mas do outro lado da relação contratual entre homens livres e “iguais”, produz muitos lucros.

O capitalismo produziu contemporaneamente as relações de trabalho mais distópicas possíveis. A ficção científica de décadas atrás é hoje realidade cotidiana com o avanço da informática e internet. Assim como no início da revolução industrial e num aparente paradoxo, o que progresso da humanidade produz para a sua parcela trabalhadora é desumanidade. O controle do trabalhador pelo capital é cada vez mais intenso. Os direitos outrora conquistados se esfumaçam diante de meios sofisticados para burlá-los Aplicativos como Uber e IFood não surgem para conectar o restaurante ao consumidor, mas sim para usurpar os mínimos de certeza e estabilidade do passado: jornada de trabalho, salário, férias, domingo remunerado, dentre outros. Os grevistas de hoje são produto da tecnologia do capital do século XXI e que lutam por mínimos de dignidade conquistados nos séculos XIX (limitação da jornada de trabalho, folga remunerada) e XX (férias, 13°, direito se adoecer, direito de engravidar).

Além de lutarem por direitos trabalhistas que deveriam ser considerados básicos e inalienáveis, os entregadores questionam a “Uberização” da vida e lançam luz sobre o perigo que a tecnologia a serviço do capital traz para o conjunto dos trabalhadores. Uberizar as relações de trabalho é hoje o objetivo estratégico do capitalismo. Usar as novas tecnologias para produzir obsolescência de seres humanos e burlar a “camisa de força” dos direitos trabalhistas instituídos nos séculos XIX e XX é o horizonte burguês. Portanto, os entregadores fazem história não só por ousarem organizar uma categoria profissional que parecia inorganizável por sua natureza, mas por porem em tela a necessidade de todos os trabalhadores refrearem a Uberização do trabalho e o uso maciço da tecnologia para substituir seres humanos por máquinas inteligentes.

É preciso dar um basta e não tolerar mais incerteza, mais insegurança, mais obsolescência. A ideologia dominante apregoará que a “modernização” é inexorável e todos têm que “correr” para se adequar, sob pena de ficar para trás (“E daí?!). Ser contra essa modernização a serviço da acumulação de capital é ser retrógrado. Nada mais falso e ideológico.

Às categorias profissionais que ainda gozam de um mínimo de estabilidade tenham clareza que o entregador de hoje lutou por vocês também. Professores e demais trabalhadores da educação estão entre aquelas profissões consagradas e relativamente estáveis que a “modernização” do capital avança para produzir mal estar. O avanço das novas tecnologias à educação impulsionadas durante a Pandemia por governos e instituições privadas (com ou sem fim lucrativo) não se destina a garantir que os estudantes tenham o ano letino 2020, mas sim a converter amanhã uma massa de profissionais em sujeitos obsoletos e, aos que permanecerem, produzir uma vida ainda mais incerta e angustiante. Obviamente, a maioria dos que tem defendido o ensino 100% remoto está movida por razões generosas de evitar a perda do ano letivo por parte dos alunos, contudo, a mesma boa vontade não podemos depositar àqueles governos e instituições privadas que orientam a política pública de educação do país (Todos Pela Educação, Fundação Lehman, etc). Já há fatos concretos na rede privada de ensino superior que explicitam os prejuízos desta “tecnologização” para os profissionais da educação. O afã do trabalho remoto na educação hoje busca acelerar um processo que duraria anos, não podemos nós profissionais da educação sermos agentes ativos da nossa própria negação. O suicídio de classe é uma tragédia só explicável pela força da ideologia. Portanto, resistamos não contra a tecnologia em si, potencialmente libertadora, mas contra a tecnologia a serviço do capital e suas instituições públicas e privadas. Não deixemos que os entregadores de hoje sejamos nós amanhã. Para isso, lutemos como um entregador!

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