Será o fim dos Institutos Federais? Uma análise crítica do PL 11.279/2019

Por Fabiano Duarte Machado[1] e Gabriel Magalhães Beltrão[2]

 Em pouco mais de dois anos o Governo ilegítimo de Temer atacou profundamente a educação, favorecido pela conjuntura de esgotamento do ciclo de conciliação de classes e a nova condição de produção discursiva irrompidas com crise de 2015[3]. Nesse cenário regressivo de “escola sem partido”, cortes orçamentários e até cancelamento de campus da expansão, podemos destacar a contrarreforma do ensino médio que feriu de morte o decreto 5154/2004[4]. Tal decreto conseguiu estabelecer as bases legais para a mais importante conquista do povo brasileiro no campo educacional, a Rede Federal e seu ensino médio integrado, produto de um esforço gigantesco da luta dos trabalhadores da educação e pesquisadores da EPT em disputa contra o lobby dos setores empresariais e das forças retrógradas.

O referido governo chegou ao Palácio do Planalto de forma ilegítima, sendo alçado a tal posto por um bloco de forças políticas nitidamente ultraliberais na economia e conservadora nos costumes. A retórica falaciosa do antipetismo e do combate à corrupção “via redução do Estado” foram capazes de animar inclusive segmentos da classe trabalhadora que dependem, direta ou indiretamente, das políticas públicas. Pois bem: nos dois anos e sete meses de mandato, Temer e seu Ministro da Educação, Mendonça Filho, se encarregaram da tarefa aos quais foram designados e asfixiaram duramente a educação pública, os Institutos Federais em particular. Segundo dados do Conif (Conselho de Reitores dos IFs), apenas entre 2015 e 2017 os cortes com custeio dos 644 campi e 878 mil alunos foi da ordem de 14% (valores corrigidos pela inflação). Nos investimentos (capital) para construções ou aquisição de bens duráveis a queda foi da ordem de 61% no mesmo período.

Apesar disso, parafraseando Nelson Sargento, os IFs “agonizam, mas não morrem”[5]. No caso, quem os socorre é a expressiva quantidade de servidores efetivos (TAEs e docentes) e, principalmente, de alunos Brasil afora, com uma alta capilaridade e resultados exitosos, tanto em termos de inserção no mercado de trabalho quanto na verticalização para o ensino superior. O governo “pinguela” de Temer chegou ao fim antes que pudesse concluir sua obra no campo da educação profissional e tecnológica (EPT), entretanto, com a principal contrarreforma do seu governo no campo da educação, a chamada “reforma do ensino médio”, ele deixou a Rede Federal à espreita diante de um “novo ensino médio” que a ameaça em sua concepção original e progressista, técnica e humanista, acossando-a a regressar às concepções estreitas de EPT que marcaram a história do país.

Para fechar o cerco contra o IFs e seu ensino médio integrado, já nos estertores do seu governo, circulou nas redes sociais uma minuta de projeto de lei que, na esteira da contrarreforma do ensino médio, dentre outros aspectos, altera tópica, mas substancialmente, a Lei nº 11.892/2008 que engendrou os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs) e instituiu a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica. O agora PL 11.279/19 é obra do governo Temer e que foi recepcionado pelo governo de extrema direita de Bolsonaro, que o apresentou ao Legislativo no dia 3 de janeiro. Passemos à análise do referido PL e suas possíveis consequências.

Inicialmente, vale mencionar a irresponsabilidade autocrática quanto à forma envolvida no PL 11.279/19, que versa sobre questões importantes de diversas naturezas (e de leis diversas) em um único projeto de lei. Criação de IFs e de Universidades se imiscuem à contratação de TAEs substitutos e até da alteração de lei que versa sobre uma empresa pública envolvida com a construção de submarinos (Amazul). Tal forma denota a intenção de confundir o olhar desatento, ocultar as mudanças significativas constantes no PL, que passaria por um “projeto singelo”. Diante de um governo que alterou profundamente o ensino médio do país por meio de Medida Provisória, é legítimo acreditar que há má fé nessa forma de tratar as coisas. Continuando a análise.

  1. Primeiramente é interessante notar que o PL trata os IF de Educação, Ciência e Tecnologia (Lei nº 11.892/2008) simplesmente por IF de Educação. Certamente não se tratou de um lapso, mas da imputação de uma “nova” designação mais consonante com o que se espera dos IFs daqui para frente.
  2. A criação de novos IFs em São Paulo e na Bahia, via desmembramento do IFSP e dos IF Baiano e da Bahia, foi ventilada desde 2017 e tem o objetivo nítido de quebrar parcialmente a resistência que existe a nível do Conif à adoção da “reforma do ensino médio” pela Rede. Afinal de contas, durante 5 anos esses IFs terão seus reitores pro tempore nomeados pelo Ministro da Educação, ministro este que atualmente é um estrangeiro não assimilado ao Brasil, posto que qualifica pejorativamente os brasileiros como “canibais”, e que não tem experiência acadêmica e/ou de gestão no campo da educação.
  3. O PL ainda propõe alterações nos artigos 12 e 13 da Lei nº 11.892 a fim de restringir os servidores dos IFs que possam pleitear disputar as consultas/eleições para os cargos de reitor e diretores de campus. Além da exigência já constante no texto original (5 anos de efetivo exercício nos IFs), torna-se necessário o preenchimento de outras duas exigências, enquanto anteriormente era apenas uma entre duas possibilidades (substitui-se o “ou” pelo “e”). Desta forma, candidatos a reitor e diretor têm que possuir quatro e dois anos, respectivamente, de “experiência comprovada em gestão na EPT”. Seguindo esse critério, a disputa democrática será reduzida substancialmente e a tendência é que as direções se perpetuem e se tornem oligarquias, posto que os que estiverem na direção terão a prerrogativa de qualificar, ou não, os servidores para que se tornem potenciais candidatos.

Os pontos expostos acima são claramente antidemocráticos e reforça a natureza autocrática do Estado brasileiro. Alteram a vida institucional e administrativa dos IFs sem que tenha havido nenhuma consulta aos reais interessados. Perdem, com isso, a democracia e a autonomia política dos IFs.

Todavia, é nas alterações propostas nos artigos 7º e 8° que o PL traz a sua perspectiva estratégica tendo em vista a superação do estado de coisas erigido em 2008 com a Lei 11892.

  1. A legislação em vigor deixa explícita que o vértice dos IFs é a educação profissional de nível médio na forma de cursos integrados, os quais devem responder por no mínimo 50% das matrículas ofertadas. Os IFs também podem ofertar educação profissional de nível médio na modalidade subsequente e concomitante, porém a prioridade é claramente ao médio integrado. O PL altera a redação do inciso I do artigo sétimo e suprime a prioridade conferida ao médio integrado, ao mesmo tempo em que no artigo oitavo eleva a exigência de educação profissional de nível médio de 50% para 70%.

Ora, não custa lembrar que como um dos cinco itinerários formativos[6] constantes na “reforma do ensino médio” é a formação técnica e profissional, justamente o que tem tido maior apelo da mídia, dos governos e do empresariado, é justo se depreender desta nova redação proposta que a perspectiva para os IFs será ofertar educação profissional de nível médio de maneira crescente mediante a forma concomitante e em parceiras com os sistemas estaduais de ensino. O fim do piso de 50% das matrículas para o médio integrado e a elevação para 70% do ensino profissional de nível médio traz implícito o crescimento que ocorrerá nos próximos anos da modalidade concomitante, em detrimento do integrado.

Essa mudança irá alterar substancialmente os IFs. Em um esforço prospectivo, elenquemos algumas hipóteses. É possível que os IFs se convertam em apêndices dos sistemas estaduais de ensino, dado que o grosso dos seus alunos de lá virá através de parcerias. As autonomias didático-pedagógica e mesmo disciplinar poderão ser prejudicadas, ainda que formalmente continuem a existir. Quanto ao corpo discente, os IFs receberão um grande número de alunos que por obrigação legal e falta de opção farão seus cursos concomitantes. Vale lembrar que a “reforma do EM” obriga os sistemas estudais a ofertarem apenas dois itinerários formativos dos cinco possíveis, sendo muito provável que ofertem o mínimo. A educação profissional será uma delas, certamente. Desta forma, o grosso dos estudantes dos cursos concomitantes o fará sem nenhum interesse genuíno, apenas por obrigação para a obtenção do diploma de nível médio. Essa condição não deve se confundir com a do atual discente que faz o curso integrado tendo em vista apenas o Enem, motivo da reclamação de muitos docentes das disciplinas técnicas, pois o nível de alheamento do aluno será muito maior à medida que sua experiência com o local de ensino será muito mais restrita e aligeirada. Não é um formato como esse proposto pelo “novo ensino médio” que contagiará os alunos para o prosseguimento da sua carreira profissional, outros fatores é que condicionam essa escolha. Quanto aos docentes, vale lembrar que na “reforma do EM” está previsto que os professores das disciplinas de educação profissional podem ser contratados por “notório saber”, o que somado à disposição por ampliar as terceirizações no serviço público pode conduzir os IFs à contratação precária e terceirizada desses profissionais.

  1. Ainda no artigo sétimo, o PL suprime a exigência mínima de 20% das matrículas para a oferta de cursos de licenciatura visando à formação de professores da educação básica, especialmente de ciências e matemática. Suprime-se, portanto, o esforço para a formação de professores do ensino básico em áreas cuja oferta de profissionais capacitados está aquém da demanda real e potencial. Esta modificação também é oriunda da “reforma do EM”, que aponta para a desprofissionalização do trabalho docente, serviço que pode ser ofertado por qualquer profissional com “notório saber” e sem haver necessidade de “formação pedagógica”. Uma suposta competência, portanto, subsume a formação pedagógica e, com isso, os IFs perdem sua importância na formação de profissionais qualificados para o ensino básico brasileiro.
  2. O PL 11.279/19 altera o inciso “e” do artigo sétimo e restringe a oferta de cursos de pós-graduação à modalidade profissional, vedando a abertura de pós-graduações acadêmicas. Aponta-se para uma especialização da oferta que restringe o escopo dos IFs, talvez com o objetivo de torná-lo mais diretamente sintonizado aos interesses do mercado.

Numa visão de conjunto das alterações proposta no PL 11.279/2019 é plausível concluir que ele enquadra os IFs nos ditames do “novo ensino médio”. Ainda que não haja alterações que, explicitamente, ponham fim aos IFs e à Rede Federal oriunda da Lei nº 11.892/2008, as tópicas propostas de mudança têm a potência de, no médio prazo, alterá-los substancialmente ao restringir o escopo de atuação, ainda que sem alterações formais. Voltando à questão da nomenclatura utilizada no PL, conforme dito por nós acima, não é sem sentido a utilização tão somente da definição de “Institutos Federais de Educação” por parte do PL, negligenciando a “Ciência e Tecnologia” constante na Lei nº 11.892. A hipertrofia dada pelo PL à formação profissional de nível médio e sem prioridade aos cursos integrados, no médio prazo inviabilizarão várias finalidades e objetivos imputados aos IFs desde sua origem, tais como a realização de pesquisas aplicadas e atividades de extensão, elidindo a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Os impactos dessas mudanças deverão se reverberar na carreira dos docentes EBTT, sendo possível uma alteração legal que, em breve, venha torná-la mais condizente com os IFs na nova formatação.

Logo, o que podemos concluir é que da mesma forma que o decreto 5154/2004, uma síntese possível da correlação de forças da luta de classes na institucionalidade, possibilitou os fundamentos jurídicos da lei 11.892/2208 que criou a Rede federal e sua alma, o Ensino médio integrado, a contrarreforma do “novo ensino médio” dá sustentação jurídica para o PL 11.279/2019. A função da Rede[7] sofrerá uma profunda inflexão, e assim passará a proporcionar aos estudantes competências genéricas e adaptáveis à instabilidade das demandas do capital na atual quadra histórica. Na visão do bloco de poder atual no Brasil e sua absoluta ausência de projeto de desenvolvimento soberano da nação, os estudantes em especial os oriundos da classe trabalhadora, não precisam ter acesso à cultura geral, aos conhecimentos sistematizados, às fundamentações cientificas das atividades profissionais, lhes sendo suficiente – na visão do governo – a apresentação de “competências[8] mínimas” para sobreviver diante dos imprevistos do trabalho ultraprecarizado e intermitente da atualidade.

O PL 11.279/2019 vem para (re)significar a Rede federal. O que está em jogo é a luta pela salvação da alma dos IFs, o que está em jogo é a luta entre uma visão de mundo progressista, humanista versus uma visão retrógrada, distópica, obscurantista e anti-humanista. O que está em jogo é a disputa entre o Ensino médio integrado e seu currículo fundamentado nas necessidades sociais e no trabalho como principio educativo que preconiza não apenas a formação de técnicos, mas acima de tudo seres humanos sujeitos históricos plenos de potencialidade que atuem de maneira consciente na realidade concreta, e é por isso que o Ensino médio integrado é a alma dos IFs, exatamente por ser a mais avançada experiência educacional da história do Brasil com todas as suas limitações impostas pela realidade e a correlação de força das classes sociais.

 

 

 

 

[1] Professor do Instituto Federal de Alagoas, campus Marechal Deodoro, diretor do Sintietfal/Sinasefe e militante da corrente sindical Unidade Classista.
[2] Professor do Instituto Federal de Alagoas, campus Satuba, diretor do Sintietfal/Sinasefe e militante da corrente sindical Unidade Classista.
[3] Cf. “O RUGIDO DAS RUAS” EM 15 DE MARÇO DE 2015, NO BRASIL: ACONTECIMENTO, DISCURSO E MEMÓRIA. Maria do Socorro Aguiar de Oliveira Cavalcante, Fabiano Duarte Machado. Disponível em: https://seer.ufrgs.br/organon/article/view/57216
[4] Cf. A GÊNESE DO DECRETO N. 5.154/2004 um debate no contexto controverso da democracia restrita. Autores: Gaudêncio Frigotto, Maria Ciavatta e Marise Ramos. In: ENSINO MÉDIO INTEGRADO concepções e contradições. São Paulo: Cortez, 2012.
[5]Cf. QUAL O FUTURO DA REDE FEDERAL DE EDUCAÇÃO PROFISSIONAL, CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA? Disponível em:  https://www.sintietfal.org.br/blog/qual-o-futuro-da-rede-federal-de-educacao-profissional-cientifica-e-tecnologica-2/
[6] São eles: linguagens e suas tecnologias, matemática e suas tecnologias, ciências da natureza e suas tecnologias, ciências humanas e sociais aplicadas e formação técnica e profissional.
[7] Cf. As obras: FRIGOTTO, G. A produtividade da escola improdutiva. São Paulo: Cortez, 1984. Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia: relação com o ensino médio integrado e o projeto societário de desenvolvimento / Gaudêncio Frigotto, organizador. Rio de Janeiro: UERJ, LPP, 2018.
[8] Cf. RAMOS, Marise. A pedagogia das competências: autonomia ou adaptação?/ São Paulo: Cortez, 2011.

Um Comentário em “Será o fim dos Institutos Federais? Uma análise crítica do PL 11.279/2019

Damir
19 de fevereiro de 2019 em 16:07

Saudações!

Os IFs tiveram uma longa evolução desde que surgiram há mais de cem anos com escolas de Aprendizes e Artificies. Uma importância social gigantesca nos últimos anos com o ensino integrado como centro de formação para os filhos da classe trabalhadora. Esse PL é um genocídio contra esse legado. Derrotar o PL11.279 é como bem frisado “salvar a alma”, a essência dos IFs, dever para todos nós que defendemos essa instituição.

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