FUTURE-SE – ANÁLISE PRELIMINAR

Por Sílvia Regina Silva Mota[1]

Criado, segundo o Ministério da Educação, para fortalecer a autonomia financeira das universidades e dos  institutos federais, o PL Future-se tem recebido muitas críticas quanto à forma como foi instituído e colocado para a discussão em sociedade. Todas as análises – todas, sem exceção, publicizadas até agora – condenam o fato de as entidades e organizações ligadas à educação, à pesquisa e ao desenvolvimento não terem sido escutadas e consideradas na sua elaboração. Para não dizer que não houve participação da sociedade, foi aberta uma consulta pública online para contribuições até 15 de agosto. No documento, há um resumo do programa, com pontos básicos deste, como objetivos, operacionalização, papel da organização social etc., mas sem qualquer discussão, apenas com a solicitação de apresentação individual de um comentário “adicional” a cada um dos pontos da pesquisa. Vale salientar que o projeto Future-se foi lançado oficialmente para a mídia no dia 17 de julho de 2019. Diante da exiguidade do tempo, quem garante que essa discussão se dará no âmbito do conjunto da sociedade? Não há previsão de audiências públicas das várias entidades envolvidas no programa.

A Universidade Federal de Pelotas fez uma análise preliminar, inclusive com uma leitura mais densa do conjunto de alterações nas legislações federais vigentes e recorre a princípios de constitucionalidade, as quais o Future-se propõe alterar. Para promover a autonomia financeira das UFs e IFs, estão previstas alterações em trechos de 16 leis atualmente em vigor. A lista inclui a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional; o Plano de Carreiras e Cargos do Magistério Federal; a lei que trata dos fundos constitucionais das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste; as regras para isenção tributária de importações e as regras de deduções do imposto de renda.

Todas as análises têm caráter preliminar, inclusive a do professor Roberto Leher, da UFRJ, em que, logo no início, faz uma observação metodológica, afirmando não ser cientificamente adequado analisar um projeto de lei, dissociado do contexto econômico-político em que se insere, como por exemplo, sem levar em consideração os efeitos da EC 95/2016 para as verbas discricionárias do Estado Federal e do MEC, sem uma análise da situação do financiamento das universidades e dos institutos federais. Ao mesmo tempo, ele critica não haver, no projeto, referências e estudos de viabilidade para torná-lo inteligível. A mesma crítica faz a deputada federal do PT por MG e professora emérita da UFJF, Margarida Salomão, ao afirmar que “Tudo no Future-se é virtual. O programa anuncia a criação de Fundos de Investimentos no valor de aproximadamente 100 bilhões de reais a serem constituídos com recursos obtidos pela alienação de imóveis da União, mas os imóveis ainda precisam ser alienados, os fundos têm de ser ainda constituídos, sua gestão determinada e a apropriação de seus rendimentos estabelecida. Tudo está por vir.”

Segundo ainda a professora, o Future-se é uma proposta que alegadamente equacionaria o financiamento da educação superior e, ao mesmo tempo, reforçaria a autonomia acadêmica. Para ela, o programa “não faz nem uma coisa, nem outra, é vago e chega a ser difícil criticá-lo a não ser pelos fundamentos que o justificam, pela lógica que a ele preside e pelas eventuais consequências que sua adoção suscitaria”.  Margarida Salomão salienta que:

  • ao contrário do que afirma o Secretário da SESU, que o problema das universidades é de gestão e não de recursos, faltam recursos sim às universidades, comprimidos estruturalmente pela EC 95 e conjunturalmente pelo contingenciamento orçamentário; os resultados apresentados pelas universidades públicas demonstram serem estas bem geridas;
  • a escassez de recursos oprime e prejudica a evolução da universidade pública no Brasil e é dessa escassez que o MEC e o Future-se não tratam; ao contrário, o MEC tem elogiado as gestões que vêm-se adequando a ela;
  • os “novos recursos” de que trata o PL são conversa requentada. As IFES já geram recursos próprios com pesquisa, extensão, prestação de serviços, inovação, incubação de empresas, inclusive startups (tipos de empresas que se diferenciam das empresas tradicionais em três aspectos: uso intensivo de tecnologia, estrutura enxuta e inovação no modelo de negócio). Em 2019, no Brasil, quatro das seis startups unicórnio (grupo seleto de empresas que passam por um crescimento exponencial, alcançando a avaliação de US$ 1 bilhão por uma agência de capital de risco), procedem da USP. A legislação para Inovação no Brasil existe e é de autoria dela: a EC 85, promulgada em 2015, e o Marco Nacional da Ciência e da Tecnologia sancionado em 2016, por Dilma Rousseff.
  • esses recursos gerados pelas IFES são complementares ao financiamento destas, que deverá ser feito pelo poder público, que é quem sustenta as universidades de ponta no mundo, as atividades de formação, de pesquisa e desenvolvimento.

Vale salientar que, embora a fala da professora Margarida Salomão destaque a sanção pela presidente Dilma Rousseff do Código de Ciência, Tecnologia e Inovação proveniente do Projeto de Lei da Câmara (PLC) 77/2015, avaliamos essa ação do governo petista, referendada também, na época, pelo STF, ao liberar a gestão dos serviços públicos por organizações sociais[2], como extremamente danosa aos direitos sociais dos trabalhadores, uma vez que legalizou a transferência de recursos públicos para a iniciativa privada, retirando, assim, desde lá, a autonomia das nossas instituições e prejudicando-lhes o caráter público e estatal, o qual sempre defendemos.

O Future-se é lançado no momento em que o país vive um contexto socioeconômico e político de contingenciamento e austeridade fiscal de longo prazo, produzidos pela EC 95/2016, e se nos configura como fenômeno funcional ao ocaso das IFES no médio prazo por escassez de recursos. Traz tudo isso como realidade subjacente e tratora até mesmo a legislação que norteia as nossas instituições públicas de ensino: a LDB, os PNEs, os PDIs, acenando para a privatização da educação pública brasileira e excluindo de vez da maioria dos estudantes a possibilidade de cursar a graduação. As instituições podem ou não aderir ao Future-se, mas isso é um engodo, elas estão mesmo é entre a cruz e a espada. As que aderirem perderão a sua autonomia didático-pedagógica e financeira, e terão de entrar, com unhas e dentes, na luta por recursos no mercado financeiro. Elas deverão trabalhar com a organização social a ser contratada pelo MEC em todos os três eixos (gestão, governança e empreendedorismo; pesquisa e inovação, e internacionalização); aderir ao sistema de governança a ser indicado pelo MEC – os detalhes não constam no texto; adotar programa de integridade, mapeamento e gestão de riscos e controle interno, além de submeter-se a auditoria externa.

Contraditoriamente, não há, no Future-se, o que há de ser das IFES que não aderirem ao programa, no entanto, no seu lançamento, o Ministro da Educação foi bem claro: o Future-se é tudo ou nada, sugerindo, assim, que as instituições que não aderirem ao programa certamente ficarão alijadas dos recursos do Governo Federal e estarão fadadas à extinção. É como diz o ditado popular: se correr, o bicho pega; se ficar, o bicho come. Com a inclusão de um segundo parágrafo ao Art. 1º da Lei 10.973/2004, essas intenções parecem bem claras, ou seja, visam a aumentar, ao contrário do que afirma o Art. 27 da mesma lei, as desigualdades regionais. A sociedade estará sujeita às mais gritantes diferenças na promoção da educação pública no país e, consequentemente, muitas IFES estarão fadadas à extinção e os seus servidores vulneráveis à demissão “justificada” do serviço público (mesmo posicionamento do Prof. Roberto Leher na sua análise preliminar do programa). Uma coisa, porém, é factível: as instituições que não cumprirem as obrigações estabelecidas poderão ser excluídas do programa e a elas poderão ser aplicadas penalidades, que, como tudo que há de vir, também não estão descritas no texto.

Várias leis serão alteradas em caso de aprovação do Future-se. É necessário, porém, atenção para algumas alterações, senão mesmo para todas, quanto às intenções que podem estar subjacentes às modificações. Aos interesses de quem estas atenderão? Vejamos:

  • A lei 9.637/98 prevê que os membros do conselho administrativo das OSs não devem receber remuneração pelos serviços que a estas prestarem, ressalvada a ajuda de custo por reunião da qual participem. O Future-se pretende alterar essa lei, especificamente no seu Art. 3º, para que os conselheiros possam ser remunerados.
  • A lei 9.250/95, que altera a legislação do imposto de renda das pessoas físicas, permitirá que as doações feitas ao programa Future-se sejam deduzidas do IR.
  • A lei 9.394/96, ou a LDB, validará automaticamente diplomas obtidos em universidades estrangeiras de alto desempenho e o notório saber terá ampliada a sua forma de reconhecimento.
  • A Lei 8.313/91 considerará como atividades culturais as atividades de pesquisa e extensão das Instituições Federais de Ensino Superior – IFES. A professora Margarida Salomão questiona a aplicação da Lei Rouanet para financiar as atividades de Extensão, alegando que essa sugestão feita pelo Future-se indica um forte desconhecimento do que seja a Extensão Universitária, da qual fazem parte a Inovação e o Desenvolvimento Tecnológico.
  • A Lei 9.249/95 autorizará que as doações, quando em dinheiro, sejam feitas mediante crédito em conta corrente bancária diretamente em nome da entidade beneficiária ou da organização gestora de fundo.
  • A Lei 8.191/91, que dispõe sobre a isenção de impostos sobre Produtos Industrializados (IPI) e depreciação acelerada para máquinas, equipamentos, passará a beneficiar as empresas que investirem no programa Future-se.

Por fim, depreende-se que o PL Future-se pretende, única e exclusivamente, mercantilizar a educação pública brasileira. Além disso, percebe-se uma tentativa clara de reafirmar as teorias do Escola Sem Partido e da Lei da Mordaça, visando também à retirada da autonomia didático-pedagógica das nossas instituições e dos seus docentes. O Art. 11 determina que “as IFES participantes deverão implementar e manter mecanismos, instâncias e práticas de governança, em consonância com as seguintes diretrizes: […] VII – avaliação da satisfação dos alunos com professores e disciplinas”. Ou seja, será adotado o mesmo sistema da rede privada de ensino, em que o professor fica à mercê da empatia do aluno, cujos pais são os principais responsáveis pelos recursos mantenedores da instituição.

No Future-se, são estabelecidas metas financeiras a serem atingidas pelas instituições de ensino, como se estas fossem meras empresas mercantis. Está prevista a criação até de uma espécie de SAC (Serviço de Atendimento ao Cliente) nas IFES para o recebimento de reclamações, denúncias e atendimento ao usuário. A escola será uma empresa, que viverá da rentabilidade, do lucro, da competição de mercado (haverá os naming rigths, associação dos nomes das IFES a marcas e produtos) e, se não der certo, fechará as portas e se demitirão em massa os funcionários do serviço público, dedução que é possível, porque não há, no PL, previsão de continuidade para as instituições que não derem certo no programa, tampouco para aquelas que não aderirem a ele. Começamos a entender, então, a teia de ataques aos servidores públicos e percebemos que não foi à toa a pressa do Governo para regulamentar o fim da sua estabilidade no serviço.

Este governo atira a pedra sabendo onde ela cairá. O Future-se é um projeto de lei despreocupado com os princípios e fins da educação, propostos na LDB, que afirma ser esta inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, e que tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Quando trata de governança no PL, o governo se refere, única e exclusivamente, à administração dos recursos do programa pelas OSs dele participantes. É, como já afirmamos aqui, a comercialização, o empresariamento da educação brasileira. O Governo e o MEC, nas pessoas do presidente Jair Bolsonaro e do ministro da educação Abraham Weintraub, serão os Pôncios Pilatos da Educação Brasileira, condenando as nossas instituições a morrerem na cruz da miséria.

[1] Professora aposentada do Instituto Federal de Alagoas. Vice-presidente do Sintietfal, Sindicato dos Servidores Públicos Federais da Educação Básica e Profissional no Estado de Alagoas, entidade representativa dos docentes e técnicos administrativos do Instituto Federal de Alagoas. Filiado ao Sinasefe e à CSP-Conlutas. Mestra em Linguística pela UFAL.

[2] No direito do Brasilorganização social ou O.S. é um tipo de associação privada, com personalidade jurídicasem fins lucrativos, que recebe subvenção do Estado para prestar serviços de relevante interesse público, como, por exemplo, a saúde pública.[1] A expressão “organização social” designa um título de qualificação que se outorga a uma entidade privada, para que ela esteja apta a receber determinados benefícios do poder público, tais como dotações orçamentáriasisenções fiscais ou mesmo subvenção direta, para a realização de seus fins. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Organiza%C3%A7%C3%A3o_social

 

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