O fim da harmonia entre os Poderes da República: EC95 e a marcha do autoritarismo

Por Gabriel Magalhães

Temperatura política entre os Poderes irá inexoravelmente continuar esquentando. A despeito do atrito também ser ocasionado pela disputa interna à direita brasileira, entre liberais e fascistas, a causa última deste atrito contínuo e crescente é a EC95, a “PEC da Morte”. Com o estabelecimento da trava constitucional ao crescimento dos gastos públicos primários (não financeiros), a parte da receita utilizada para despesas primárias tende a cair ano após ano. O governo impõe uma política de austeridade sem fim, mas mesmo assim não consegue conter o crescimento natural das despesas, vide Previdência, gastos com pessoal e outras despesas obrigatórias (despesas de Estado, não de governo). Assim, a cada ano sobra menos recursos para uso discricionário. O conflito por este recurso entre os Poderes e mesmo entre as suas instituições componentes tende a se aguçar. A disputa fratricida adquirirá contornos cada vez mais salientes.

O Congresso Nacional, formado por políticos profissionais e variadas oligarquias regionais, percebeu essa inevitabilidade e ainda em 2019 aprovou o orçamento impositivo, garantindo que as emendas parlamentares adquirissem natureza vinculada, sem necessidade de liberação discricionária por parte do Executivo. Trata-se de garantir uma parte do orçamento sem negociação com o Planalto, algo essencial em tempos de escassez progressiva. A classe política tradicional brasileira precisa desses recursos para a sua preservação enquanto tal, por isso impôs o orçamento impositivo. A temperatura só tende a esquentar, inclusive com o Judiciário, que também precisa fazer seus investimentos para manter sua opulência.

No limite é importante se perguntar sobre a aderência, ou não, da EC95 com o Estado brasileiro instituído em 88. A política de austeridade sem fim não tem sido suficiente para destruir o Estado social e preservar os Poderes da República incólumes. A destruição é generalizada, o que deve impor uma nova forma de Estado, mais enxuta ao sabor do discurso neoliberal. A militarização do Executivo também é um reflexo dessa asfixia orçamentária, visto que a classe política tradicional não parece ser mais compatível com o novo modelo oriundo da EC95. Ainda que tenha havido uma generosa reforma da carreira dos militares, os custos de representação dos milicos são muito mais “enxutos” do que os dos políticos profissionais, afinal de contas, aqueles não têm base eleitoral alguma e não precisam do fisiologismo das emendas parlamentares para se reeleger nas eleições seguintes. Em resumo, a EC95 instaura uma marcha progressiva rumo à reorganização institucional do Estado brasileiro, que no limite venha a superar o status quo da relação entre os Poderes. O atual equilíbrio entre eles não parece ser aderente à EC95, tendendo-se mais para a concentração de poder em um dos Poderes em detrimento dos demais, que podem vir a ser fechados ou esvaziados. O autoritarismo é um corolário inevitável da EC95, o ovo da serpente aprovado em 2016 imediatamente após o golpe. Revogar a EC95 é uma necessidade imperiosa na plataforma política de quem se poste como democrata. Sem sua revogação imediata a marcha autoritária se converte numa necessidade objetiva.

Arisco dizer que esses Poderes intercalarão momentos de disputas abertas pelo butim sucedidas por relativa, e temporária, calmaria, quando se unificam para aprovar alguma medida que destrua o Estado social e libere alguma verba para a reprodução do caduco Estado tripartite. Assim, Rodrigo Maia racionalmente quer a Reforma Administrativa por saber que ela é essencial à preservação do status quo, pois libera algum recurso que atenua transitoriamente as disputas fratricidas entre os Poderes. O Executivo, por sua vez, quer a reforma administrativa para não só fazer caixa e reduzir o déficit primário, mas também para aumentar o mínimo que seja sua capacidade de investimento nos últimos dois anos de mandato, decisivos para quem pretende se reeleger em 2022.

Neste embate uma coisa é clara: Bolsonaro é a mudança, é o antissistêmico que quer enterrar a classe política apodrecida e desmoralizada perante o cidadão médio. Rodrigo Maia e os congressistas representam a preservação de tudo que é abominado pela sociedade, que cobra o ideário liberal de uma máquina “enxuta”. Desta forma, a esquerda pode até atuar pontualmente em conjunto, em unidade de ação, com essa direita liberal e pró-reprodução do status quo para rechaçar medidas antissistêmicas – leia-se, fascistas – emanadas do Executivo, todavia, qualquer iniciativa que vá além de uma unidade de ação pode tatuar na esquerda – a quem compete o futuro, a mudança, a inovação – a marca da conivência com esse passado-presente apodrecido. Ademais, essa mesma direita liberal acastelada no Congresso não é contrária à EC95, logo é responsável direto pelo esgarçamento das políticas sociais e das condições objetivas para a manutenção da institucionalidade erigida em 88. Há que se ter flexibilidade tática para evitar o pior, o retrocesso, sem jamais perde o norte e a marca da mudança. No fio da navalha.

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