O mito de que todos os servidores públicos são juízes

No primeiro texto, tecemos breves considerações em relação à quantidade de servidores públicos no Brasil, considerando sua evolução nos últimos trinta anos de modo a cruzar esses indicadores com o total de vínculos formais (público e privado) existente no país, para, por fim, comparar o percentual de servidores públicos com a média dos países da OCDE. Este comparativo com os países do chamado “clube dos ricos” não foi fortuito: a organização reúne os países capitalistas ocidentais de maior desenvolvimento econômico e melhores indicadores de qualidade de vida para os cidadãos (IDH/PNUD/ONU). A comparação nos permitiu concluir que o Brasil não tem um “inchaço” de servidores públicos, como se apregoa no mainstream econômico. Ao contrário, apesar do crescimento quantitativo verificado no pós-constituinte, o comparativo nos mostra haver uma escassez de servidores públicos, certamente uma das razões primordiais para a ainda deficiente prestação de serviços públicos em diversas áreas das políticas públicas.

Dando continuidade à série “Quem são e qual a importância dos servidores públicos”, neste texto traremos considerações sobre 1) onde estão alocados os 11,4 milhões de servidores públicos e 2) apresentaremos dados a respeito da evolução dos vínculos “estatutários” e não estatutários na prestação de serviços públicos essenciais nas últimas décadas.

 

  1.  Distribuição dos servidores públicos por nível federativo e Poderes

O crescimento de 123% no número de servidores públicos entre 1986-2017 não se deu de forma homogênea entre os entes federativos (federal, estadual e municipal). Os dados apresentados por Lopez e Guedes mostram que no período a expansão do contingente de munícipes foi da ordem de 276%, saltando de aproximadamente 1,7 milhões para 6,5 milhões. Entre os estaduais o crescimento foi de 50%, de 2,4 milhões para 3,7 milhões em 2017. Já a nível federal (incluindo civis e militares) a ampliação foi da ordem de 28%, de 923 mil para 1,18 milhão de servidores. Essa disparidade no crescimento a nível municipal é explicada pela própria Constituição Federal que delegou a prestação de variados serviços públicos – principalmente os de bem-estar ao cidadão, como saúde, educação e assistência – para os municípios em substituição aos estados e à União. A isso se soma o expansão no número de municípios, que saltou de 3991 em 1980 para 5570 em 2017[1].

 

 

Considerando-se percentualmente, os munícipes saltaram de 34% para 54% dos servidores públicos; os estaduais deixaram de ser o maior contingente, reduzindo de 47,9% em 1986 para 32% em 2017; os federais declinaram de 18,1% para 10,4% em 2017. Quanto aos servidores federais, vale ressaltar que entre 1986 e 2003 houve uma redução absoluta dos seus quadros, que decaiu de 920 mil para 740 mil em 2003, quando atingiu seu menor patamar, no bojo do neoliberalismo de alta intensidade aplicado pelos governos Collor e FHC. Contudo, a partir de 2004 observa-se uma curva tímida, mas continuamente ascendente, no quantitativo dos federais. Isso se explica por dois fatores:

  • Em primeiro lugar, o esgarçamento que as políticas neoliberais tinham imposto ao tecido social brasileiro e latino-americano produziu uma onda de rebeliões populares com a ascensão de governo que buscavam se distanciar, com maior ou menor intensidade, do receituário proveniente do Consenso de Washington (1989). Aqui no Brasil, como se sabe, a insatisfação popular desaguou nas urnas em 2002 com a eleição de Lula (PT), cujo governo foi pressionado pelos sindicatos representativos dos servidores públicos federais a recompor a força de trabalho da União. Tal recomposição, como se pode observar nos índices, ocorreu nos anos seguintes, ainda que de forma muito inibida, reflexo de um governo de conciliação de classes que não superou o neoliberalismo, mas, na melhor das hipóteses, o atenuou em alguns aspectos;
  • Em segundo lugar, no ano de 2002 o TCU “considerou irregulares os expedientes precários de recrutamento utilizados nos anos 1990, como terceirizações e contratações avulsas por meio de organismos internacionais, entidades sem fins lucrativos e similares, para atividades que eram próprias do serviço público, e não de natureza complementar.” (Lassance Apud Lopez, 2017, p. 10). Em virtude desta decisão, “em 2003 foi autorizada a abertura de 24.808 vagas para concursos para o nível federal, sendo mais de dois terços (15.394) destinadas ao Ministério da Educação (MEC). (…) A partir de 2006, o MP se comprometeu a totalizar, até 2010, mais 33.125 novas vagas, o que perfazia um total de mais de 57.400 substituições de terceirizados por concursados” (Idem). A temperatura política nacional, com o fortalecimento dos movimentos sociais, sindicais e dos partidos naquela oportunidade críticos ao neoliberalismo, forçou o TCU a decidir pela inconstitucionalidade da prestação de serviços públicos inerentes ao Estado por parte de organizações privadas, com ou sem fins lucrativos. Entretanto, de lá para cá a legislação trabalhista e a jurisprudência do STF foram modificadas em prejuízo dos trabalhadores. Neste sentido, em acórdão proferido em fevereiro de 2016, o plenário do STF declarou constitucional a prestação de serviços públicos essenciais (saúde, educação, etc.) por meio das famigeradas Organizações Sociais (OSs)[2], ao que se soma a (contra)reforma trabalhista de 2017 que liberaliza totalmente as terceirizações, pondo fim à limitação imposta pelo TST[3].

No que se refere à distribuição dos servidores públicos entre os três Poderes, o gráfico abaixo apresenta os números na série histórica.

 

 

Dos mais de 10 milhões de empregados no Executivo, vale frisar que 59% destes estão no nível municipal, que se constitui no maior empregador público do país.

  1. Evolução dos vínculos não “estatutários” no serviço público

Segundo o estudo de Lopez e Guedes, para o conjunto do serviço público as contratações via regime próprio (“estatutária”) cresceram percentualmente na série histórica, saltando de 80,2% (1994) do total para 87,2% (2017). As contrações temporárias subiram de 1,1% para 7,4%[4], enquanto que as contratações via CLT declinaram de 18,1% para 4,8%, entre 1994 e 2017. Os dados indicam que as contratações via RJU cresceram principalmente no nível municipal, onde os estatutários saltaram de 66% para 86% do contingente total. Segundo os autores, “Essa mudança é positiva porque nos municípios os sistemas de espólio, que incluem demissões e contratações motivadas por razões político-eleitorais, são mais vigorosos (Barbosa e Ferreira, 2019; Akhtari, Moreira e Trucco, 2017; Lopez e Almeida, 2017); haver uma parcela maior recrutada por regime jurídico único, por sua vez, sugere que esse sistema se enfraqueceu”. Concluem os autores: “É importante lembrar que a estabilidade com o intuito de evitar demissões em razão de interesses políticos, partidários e eleitorais constitui um dos fundamentos da racionalidade administrativa dos Estados modernos e alterá-la requer uma compreensão mais detida de como esses sistemas de espólio funcionam atualmente no nível local” (LOPEZ).

 

 

Especificamente quanto ao serviço público federal, Lopez e Guedes demonstram que os estatutários recuaram de 97% para 92%. O estudo do Instituto Fiscal Independente (IFI) detecta esse movimento ao tratar especificamente do poder executivo federal: entre 1999 e 2019 os estatutários cresceram em 39 mil pessoas, ao passo que as outras formas de vínculo tiveram um incremento de 68 mil vagas. Ainda que os estatutários continuem sendo a grande maioria do executivo federal, decaíram de 96% (1999) para 88% (2019), apontando uma tendência tipicamente neoliberal e que a (contra)reforma administrativa busca intensificar, qual seja, a substituição dos estatutários por celetistas e mesmo temporários, suprimindo-se, portanto, a estabilidade no serviço público.

 

 

O crescimento do número de servidores no Executivo Federal a partir de 2004 aponta para uma recomposição parcial da força de trabalho, cujos motivos expusemos acima. O relativo revigoramento da capacidade do aparato de Estado após 2004 não se deu em prejuízo das contratações não estatutárias, ao contrário, o ritmo de crescimento destas últimas foi mais acentuado. Pode-se concluir que a radicalidade neoliberal dos anos 90 no que tange às contratações do Executivo Federal foi relativamente atenuada a partir de 2004, mas não extirpada, posto que a tendência crescente às contratações celetistas e temporárias foi mantida. O regresso do ultraliberalismo apenas acelera esta tendência já vigente e em marcha lenta, mas constante.

O pico de contratações no Executivo Federal ocorreu em 2015/16, quando atingiu a cifra de 566 mil servidores. Os últimos três anos já acumula uma perda de 37 mil vagas, estando hoje na ativa aproximadamente 529 mil contra os 566 mil de 2016. A gestão da força de trabalho dos governos Temer e Bolsonaro sempre deixaram claros os seus objetivos: não repor os casos de vacância (aposentadoria, invalidez, falecimento) com o objetivo de se criar um colapso nos variados órgãos da administração. Trata-se do que definimos como colapso criativo almejado pelos neoliberais que golpearam o poder em 2016: a não recomposição dos cargos vagos vai gerando no curto ou médio prazo o colapso da prestação de serviços, exato momento em que se impõem “saídas” regressivas para se remediar o órgão colapsado. Isso tem ocorrido de forma exemplar no INSS, que vivenciou uma enxurrada de aposentadorias durante o trâmite da (contra)reforma da previdência em 2019 e colapsou na prestação de serviço à população. Como solução o governo tem proposto uma espécie de reforma administrativa por decreto e militarizada, sendo previsto a contrações de militares da reserva por um período de até 8 anos, suprimindo-se, portanto, a realização de concursos públicos para a seleção de civis regidos pela Lei n° 8.112/90[5].

 

 

  1. Conclusão

Ainda sem adentrar no terreno das remunerações e do total de despesas, restringindo-se ao quantitativo de força de trabalho, os dados apresentados acima evidenciam que a grande maioria dos servidores públicos brasileiros situa-se a nível dos municípios e no Poder Executivo dos três níveis. Neste sentido, a tentativa de universalizar perante a opinião pública a condição de carreiras específicas da máquina pública estatal, como a dos juízes e procuradores, constitui-se numa manobra ardilosa daqueles que buscam estigmatizar o serviço público a fim de destruí-lo. A heterogeneidade dos servidores públicos ficará ainda mais nítida quando discutirmos acerca da remuneração.

Por fim, importante frisar que o processo de contratação de não estatutários, um dos principais objetivos da (contra)reforma administrativa tendo em vista a redução de custos com força de trabalho e a garantia de “flexibilidade” da gestão de pessoas (leia-se, fim da estabilidade e demissão), não é um processo novo. Seu avanço se deu mesmo nas gestões petistas, que apesar de recompor parcialmente o quantitativo de servidores, manteve numa crescente os contratos celetistas e temporários. A reforma de Bolsonaro-Guedes busca recrudescer esta tendência à última potência.

 

 

[1] O chamado “pacto federativo” de 1988 tem sido muito criticado nos últimos anos pelas principais representações políticas nacionais, à direita e à esquerda do espectro político. É nítido que a CF88 transferiu muitas responsabilidades para os entes estaduais e, principalmente, municipais, concentrando, todavia, a arrecadação na esfera federal. O engessamento fiscal dos estados e municípios só cresceu dos anos 90 para cá, acossados pela Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e por um endividamento junto à União que atrofia as possibilidades de investimento. O governo Bolsonaro tem prometido aprovar uma reforma tributária com a alegação de que mais recursos serão destinados aos municípios, invertendo-se a lógica de 1988 de concentrar na União. Imprescindível a acompanhamento crítico das propostas de reforma tributária, pois, ao que tudo indica, as três que estão tramitando no Congresso não vêm na perspectiva de subverter o caráter regressivo da estrutura tributária brasileira e as alegações de ampliar as transferências de receitas para os municípios soam mais como tática para atenuar a resistência das bancadas estaduais às propostas em discussão. Sobre o endividamento público alagoano, conferir: https://auditoriacidada.org.br/nucleo/artigo-divida-publica-alagoana-dominacao-financeira-crise-fiscal-e-a-superexploracao-da-forca-de-trabalho/

[2] Cf. https://www.conjur.com.br/2016-fev-12/stf-publica-acordao-libera-privatizacao-servicos-publicos

[3] A reforma trabalhista do governo golpista de Temer, Lei n° 13.467/17, pôs fim à limitação das terceirizações que provinha da Súmula 331 do Tribunal Superior do Trabalho (TST). Com isso, não se faz mais distinção entre atividade-meio e atividade-fim, podendo a totalidade dos trabalhadores de uma empresa ser terceirizado.

[4] Segundo os autores esses números não contemplam os recenseadores temporários do IBGE contratados em razão do senso em 2007 e 2010.

[5] Cf. https://noticias.r7.com/economia/inss-governo-publica-decreto-que-autoriza-contratacao-de-militares-24012020

 

REFERÊNCIAS

CASALECCHI, Alessandro. Retrato das despesas de pessoal no serviço público federal civil, Parte 1. IFI/SENADO. 2019.

LOPES, Felix. GUEDES, Erivelton. Três décadas de evolução do funcionalismo público no Brasil (1986-2017), Lopez e Guedes, IPEA/DIEST.

OCDE. Avaliação de gestão dos recursos humanos do governo. 2010.

 

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